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Foto: Acervo pessoal. |
Água,
whisky ou até absinto. Agora, não mais importava se era vinho tinto ou sangue,
precisava beber alguma coisa. A sede de
vida pulsava forte naquele momento, disfarçada em sua ânsia de autoflagelação.
Degradar-se num copo de bebida era mais fácil que admitir para si mesmo todo o
esforço feito para segurar as rédeas da própria vida. As mãos calejadas
deixavam o couro deslizar numa dor aguda, fazendo as tiras do cabresto abrir os
cortes da alma, que sangravam nas lembranças amargas de seu passado.
No
rosto do homem, as rugas denunciavam a experiência de alguém que “sabe das
coisas”; a barba por fazer já havia deixado de ser charme há anos. O relaxo do
cansaço debruçava em suas olheiras, recebendo dos olhos uma breve lágrima de
ardor após virar o martelinho de pinga. O líquido descia queimando e invadindo
seu ser, anunciando à tristeza: “Cheguei para atiçá-la.”
Vontade
de vida às avessas, mascarada no descaso pela sua rotina desgostosa e
repetidamente medíocre. Viu um homem no canto do bar, com um chapéu marrom.
Lembrou-se de seu avô no campo, sorridente e feliz, ensinando-o a laçar
cavalos.
“Como
pude desmoralizar o herói que deveria ter sido?”
Já
não suportava mais os pensamentos redundantes e saudosistas de sua análise
egoísta e incessante – o martírio agradava seus calos. Nessa hora, apertou as
rédeas mais forte contra o machucado sangrento e exposto.
Viu-se
turvo no reflexo do copo e, retomou a sessão: “Eu sou o herói que poderia ter
sido, morrendo em meu próprio ser, no desespero de ser salvo pelo herói que
quero ser.”
Bebeu
mais algumas doses até sentir-se anestesiado o bastante para finalmente sair
vagando pelas ruas, sem rumo, cambaleando em postes de esperança. Prometia a si
mesmo que naquela noite iria procurar uma mulher – queria meter e esquecer os
problemas. Mas, a amargura solitária era possessiva demais para querer dividir
sua atenção com o prazer. O homem cansado de meia idade coçava sua cabeça de
maneira tal, iludindo-se na crença de que este gesto organizaria suas ideias,
talvez até sua vida.
Correu
os olhos perturbados pela rua. Alguns garotos fumando e falando alto, alguns
bares com aglomerado de pessoas do lado de fora, belas jovens desfilando com a
pretensão de serem notadas, outras mulheres que ele sabia estarem ali a
trabalho, e ele. Imergido em seu próprio universo, julgando-se constantemente
por aquilo que nunca havia feito, pensou no chicote em suas costas. Antes deste
pensamento pesar, voltou a si com o esbarrão de um grupo de bêbados. Falaram
algo, mas ele não fez questão de entender.
Continuou
caminhando e tombou no meio fio – malditas calçadas desniveladas – pensou.
Agora sua noite estava completa, era o castigo que faltava para um arrependido
com sede de vida: bêbado, solitário, culpado, vítima de si mesmo e estatelado
no meio fio. Agora, já podia voltar para casa satisfeito e confuso, prometendo
a si mesmo: “amanhã, vou me divertir, arrumar uma mulher, procurar uma vida da
qual eu me orgulhe e ser feliz.”
Abriu
a porta de sua casa com cheiro de mofo, deitou no sofá moldado pelo seu corpo e
adormeceu com o teto girando mais do que seus pensamentos. Acordou com aquele sol
da manhã dando tapas em seu rosto, rastejou até o banheiro, tomou uma ducha e
foi trabalhar.
As
mesmas caras, o mesmos diálogos, os mesmos pensamentos na tormenta do vício de
perda, os mesmos movimentos, a mesma rotina, a mesma vida. No final do
expediente, sentiu sede. Água, whisky ou até absinto. Não importava mais se era
vinho tinto ou sangue, precisava beber alguma coisa.