quinta-feira, 24 de março de 2016

O vinho que se recusa a virar vinagre

Foto: Acervo pessoal.

Água, whisky ou até absinto. Agora, não mais importava se era vinho tinto ou sangue, precisava beber alguma coisa. A sede de vida pulsava forte naquele momento, disfarçada em sua ânsia de autoflagelação. Degradar-se num copo de bebida era mais fácil que admitir para si mesmo todo o esforço feito para segurar as rédeas da própria vida. As mãos calejadas deixavam o couro deslizar numa dor aguda, fazendo as tiras do cabresto abrir os cortes da alma, que sangravam nas lembranças amargas de seu passado.

No rosto do homem, as rugas denunciavam a experiência de alguém que “sabe das coisas”; a barba por fazer já havia deixado de ser charme há anos. O relaxo do cansaço debruçava em suas olheiras, recebendo dos olhos uma breve lágrima de ardor após virar o martelinho de pinga. O líquido descia queimando e invadindo seu ser, anunciando à tristeza: “Cheguei para atiçá-la.”

Vontade de vida às avessas, mascarada no descaso pela sua rotina desgostosa e repetidamente medíocre. Viu um homem no canto do bar, com um chapéu marrom. Lembrou-se de seu avô no campo, sorridente e feliz, ensinando-o a laçar cavalos.

“Como pude desmoralizar o herói que deveria ter sido?”

Já não suportava mais os pensamentos redundantes e saudosistas de sua análise egoísta e incessante – o martírio agradava seus calos. Nessa hora, apertou as rédeas mais forte contra o machucado sangrento e exposto.

Viu-se turvo no reflexo do copo e, retomou a sessão: “Eu sou o herói que poderia ter sido, morrendo em meu próprio ser, no desespero de ser salvo pelo herói que quero ser.”

Bebeu mais algumas doses até sentir-se anestesiado o bastante para finalmente sair vagando pelas ruas, sem rumo, cambaleando em postes de esperança. Prometia a si mesmo que naquela noite iria procurar uma mulher – queria meter e esquecer os problemas. Mas, a amargura solitária era possessiva demais para querer dividir sua atenção com o prazer. O homem cansado de meia idade coçava sua cabeça de maneira tal, iludindo-se na crença de que este gesto organizaria suas ideias, talvez até sua vida.

Correu os olhos perturbados pela rua. Alguns garotos fumando e falando alto, alguns bares com aglomerado de pessoas do lado de fora, belas jovens desfilando com a pretensão de serem notadas, outras mulheres que ele sabia estarem ali a trabalho, e ele. Imergido em seu próprio universo, julgando-se constantemente por aquilo que nunca havia feito, pensou no chicote em suas costas. Antes deste pensamento pesar, voltou a si com o esbarrão de um grupo de bêbados. Falaram algo, mas ele não fez questão de entender.

Continuou caminhando e tombou no meio fio – malditas calçadas desniveladas – pensou. Agora sua noite estava completa, era o castigo que faltava para um arrependido com sede de vida: bêbado, solitário, culpado, vítima de si mesmo e estatelado no meio fio. Agora, já podia voltar para casa satisfeito e confuso, prometendo a si mesmo: “amanhã, vou me divertir, arrumar uma mulher, procurar uma vida da qual eu me orgulhe e ser feliz.” 

Abriu a porta de sua casa com cheiro de mofo, deitou no sofá moldado pelo seu corpo e adormeceu com o teto girando mais do que seus pensamentos. Acordou com aquele sol da manhã dando tapas em seu rosto, rastejou até o banheiro, tomou uma ducha e foi trabalhar.


As mesmas caras, o mesmos diálogos, os mesmos pensamentos na tormenta do vício de perda, os mesmos movimentos, a mesma rotina, a mesma vida. No final do expediente, sentiu sede. Água, whisky ou até absinto. Não importava mais se era vinho tinto ou sangue, precisava beber alguma coisa.

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